A serra dá uma sensação de conforto.
Quem a vê, assim, quase a cair sobre a cidade, imagina um cobertor verde e quentinho em pleno inverno.
Nos tempos em que ainda não existiam tantos prédios, só dois ou três, era ainda mais caloroso espiar, de longe e do morro, a igreja matriz logo ali, no centro de tudo. À frente dela, postado no largo, o prédio do Coronel Almeida - onde ainda se dividiam classes de meninos e meninas - até hoje completa um cenário de nostalgia.
Toda cidade é assim. Transborda do centro para os bairros e vai montando blocos de tempos em tempos, como um Lego, criando núcleos que as gerações vão arquivando nas lembranças.
Minhas lembranças se limitam a uma cidade ainda pequena, onde todos se conheciam e estudavam em dois ou três colégios. Mas a serra faz meu coração pular.
A serra do Itapeti é uma cobrinha que parece se mexer na confusão de nuvens e raios do sol que se põe. Raios azulados, avermelhados, em veios amarelos e nuances de um lilás que lambe os olhos da gente. Estes raios se rasgam pela cidade, formando sombras e iluminando até onde se enxergam os telhados mais altos. Mais lá na frente, o verde se incorpora à cidade e então fica tudo quentinho, como o cobertor que nos envolve no frio. É a serra que predispõe a cidade ao fog verdadeiramente londrino, quando pouco se vê adiante do nariz. É a serra que deixa a cidade úmida e que me fez forte e pouco exposta a resfriados – a poluição fica barrada nos limites externos e ainda se vê o céu azul, azul, azul e as nuvens brancas, brancas, brancas.
Esta coleção de montanhas, colocada pela natureza como um presente para os mogianos, é o monumento à nossa riqueza que deve ser protegido e amado.
Crescer, toda cidade cresce, mas deve ser prestigiada pelo crescimento consciente e planejado para servir ao bem estar dos cidadãos. Tenho medo de que a serra se transforme num poleiro de prédios sem ordem alguma, sem orientação e com descaso pelas autoridades.
Minha cidade não é só minha, nasci lá como muitos, mas a tenho como porto seguro e como refúgio das mais incríveis lembranças. Adoro passear por ela de carro ou a pé, com a amplitude que os morros dão, percebendo em cada espaço uma ou outra relíquia que ainda sobrevive aos depredadores do patrimônio histórico que ela ainda guarda dos seus mais de 450 anos. Seria preciso mais do que vigilantes do tempo para que tudo fosse preservado – é necessário que persistam corações vibrantes que não destruam o que já temos, mas criem condições de conciliar o novo com o antigo. O antigo é o nosso porto para que tenhamos histórias para contar, para lembrar dos feitos dos nossos contemporâneos e dos que vieram antes deles.
Uma cidade como Mogi, que conviveu em suas priscas eras com índios e jesuítas, bandeirantes e mulas carregando seus fardos atravessando a Serra do Mar, deveria ser mimada e exaltada, querida por seus governantes negligentes. Infelizmente, não é a única a sofrer as mazelas da indiferença.
Entretanto, quero ainda passear por ela, passar pela praça Norival Tavares e, num giro de 360 graus, perceber que ainda vejo o céu e a serra, lá atrás; perceber que o céu ainda tem curva, numa cidade onde tudo é morro, morrinho, morrão; onde andar de bicicleta é um desafio.
Andando pela Dr. Deodato, aquele centro “nervoso”, ainda vejo a serra , que parece começar logo ali. Há algum tempo atrás, sabíamos as lojas todas e ir ao cinema era um pulo. O Urupema não tinha pastores nem drive through de oração, mas filmes que marcaram a minha e muitas outras vidas. Espero que não derrubem aquele hall de entrada maravilhoso e nem mudem a iluminação cor de pêssego que enriquecia ainda mais o mármore do chão e das paredes.
É verdade que a idade faz com que tenhamos olhos na nuca. Saí de Mogi com o propósito de viver uma vida nova, criar meus filhos e ser feliz, como sou. Mas os olhos da nuca foram aprimorando sua visão e me trazendo de volta imagens que pensei ter deixado para trás. Se um dia imaginei que pudesse esquecer da sensação de acolhimento ao descer a estrada e ver a cidade inteira se mostrando, brilhante e cálida, imaginei errado.
Em que momento podia-se crer que, além da Univerdade, existiria algo além do matagal que restou da fazenda da Iaiá e da Igreja do Socorro? Olhar toda a transformação de hoje e não ver mais o bar do Vavá é como estar sem chão. Sem chão e sem o uísque ou o rabo-de-galo. Sem cerveja e sem o caminho trôpego para a boate do clube. Sem os amigos que se encontravam de qualquer jeito, pois íamos sempre para os mesmos lugares, mesmo não tendo celulares ou GPSs.
Tudo por causa da serra e seus habitantes admiradores.
Mais um pouco e sei que a cidade vai ficar ali, que a serra vai ficar ali, formosa e consciente de sua majestade.
Mais um pouco e admito que o desafio da mudança dos ares, que aquecem as lembranças, permanecem naquela imagem acolhedora do cobertor verde que circunda Mogi.
Mais um pouco e entendo que o que fica no coração comanda os meus pés para uma caminhada leve e segura para os lugares que a recordação não deixa transformar.
setembro/2012