Criar uma Loja Virtual Grátis
ABOMINÁVEL DONA FRANCISCA
ABOMINÁVEL DONA FRANCISCA

 

 

Somos um país necessitado de leis. sempre.E há que se idealizar muitas para que as pessoas vivam melhor.

Sei pouco sobre elas, mas algumas tocam profundamente o nosso dia a dia. Lei Maria da Penha é uma delas. Apanhou, tem que correr pra delegacia sem vergonha nenhuma. Lei Carolina Dieckman é outra. Saiu pelada na foto e puseram pra rodar na internet? Lei neles. A outra lei que me pegou foi a das empregadas domésticas. Sou do tempo em que ainda é impossível viver sem uma secretária do lar. Carrego traços das donas de casa absolutamente fanáticas por panelas areadas, tapetes virados do avesso, sofás de ponta cabeça e bucha nos rodapés. Tenho um amor especial por aspirador de pó, espanador, vassouras milagrosas e pincéis para pequenos cantos. Panos de limpeza são o meu fascínio : há os que pegam o pó pela raiz, os que deixam pelos no assoalho e os que não limpam. Tenho-os de todos os tipos e uma irritação e suor diferente para cada um deles.

Quando a lei vingou, minha casa passou por uma revolução.

Nunca tive estrutura para fazer de minha casa uma empresa com relógio de ponto. Para tanto, mudanças foram necessárias e a minha queda para neuroses teve que ser repensada.

Troquei uma secretária fixa por duas faxineiras que fazem o revesamento semanal. Cada uma vem dois dias na semana e um dia fico livre de todas. Assim, me livro do livro de pontos e mantenho a crença de que quem vem trabalhar comigo faz parte da minha vida. Sem estresses ou obrigações maiores.

Uma das queridas  é a Dona Francisca. Chegou do nada e foi ficando. Tem 66 anos e é forte como um touro. É um pé-de-boi no serviço caseiro. Adora lavar tudo o que vê pela frente, esfregar, passar vinagre no tapete porque não confia no limpa-tapetes, mas não enxerga nada acima do chão. Tirar pó dos móveis não é com ela. Se não for pra lavar, varrer ou passar pano com rodo, não é com ela.

Nos dois dias de Dona Francisca, a casa muda de figura. Já se sabe que o café que ela faz é um chá, então meu marido – que tem medo do que ela é capaz de fazer -  corre e o coa antes. Em vez de colocar a mesa do café da manhã com o jogo americano que ela sabe que existe, espalha dois panos de prato na mesa e a garrafa térmica no meio, sem pratos, talheres, xícaras ou copos. E vai correndo lavar as áreas, esfregar o sabão que se avoluma a cada vassourada e colocar água, muita água nas plantas. Adora aguar as plantas também. Mas não limpa as cadeiras que ficam expostas ao tempo, nem a mesa que, olhando de longe, está esbranquiçada pela poeira trazida pelo vento da noite.

Dona Francisca é uma comédia porque, além dela fazer todas estas trapalhadas na casa, ainda coloca nomes nas coisas e tem um humor diferente. Se vou ensiná-la a fazer a limpeza de um jeito meu, ela sorri de lado e diz: “ah, sim, a casa é sua, a senhora que manda ...” ou então diz que o cachorro não gosta dela, pois faz cocô onde menos se espera. Mas ama o totó, brinca com ele o dia inteiro, joga brinquedo e, depois de um certo tempo, volta com a ladainha “este cachorro não gosta de mim, viu? “

Tenho uma coleção de bonequinhas que compramos em viagens e elas são um xodó. Escovo-as uma vez por semana e alinho-as junto aos livros. Trouxe-as de São Petersburgo, de Moscou, de Praga, de Pequim, da Tailândia. Num dia em que o gesseiro veio caprichar um trecho do teto da estante, corri e as coloquei envoltas num saco, para que não pegasssem aquele pó miserável. E não é que, vendo que as bonequinhas não estavam no lugar, Dona Francisca ficou assustada e perguntou : “Ué, cadê os cangaceiro que tavam tudo ali ? “ 

A partir deste dia, não consigo olhar para as coitadas sem pensar que elas realmente parecem cangaceiros. Acabou a aura da coleção.

Outro dia, ela chegou para trabalhar,com todo o seu dinamismo e força, metida numa legging branca e uma calcinha de onça, visível até onde ninguém queria que estivesse.

Do jeito que é danada, acho que queria pegar o gesseiro...