Um dia tormentoso se inicia quando decidem limitar os passos de um trabalhador.
No meu horizonte, o cenário fica mais bonito e arejado sem a visão empelotada dos ônibus passando como lagartas. Mas a minha paisagem é a avenida Paulista e o meu recanto flui sem eles, com acessos felizes para o metrô e a ligeireza cíclica de quem se equilibra num salto alto ou afrouxa a gravata para um caminhar menos árduo. Não moro nas zonas esquecidas e retalhadas dos arredores da cidade, onde os trens são mínimos e metrôs inexistentes. Não vivo onde a qualidade de vida se mantém no padrão idade média, com muitos jovens que não chegam aos 30 anos. Por isso a minha visão surpreendente de uma cidade melhor sem ônibus, clara e com o sol ofuscando o asfalto num brilho raro. Aqui onde vivo não há enchentes, assaltos ou tragédias urbanas que valham um noticiário. Dirijo na madrugada sozinha, sem problema algum. O que se vê no Datena ou qualquer outro esquartejador de notícias está fora dos meus limites, além do meu jardim, não cabe nas cenas bucólicas de cachorros passeando com seus donos, mesas e conversas nas calçadas, hippies tardios fazendo a mais antiga das bijouterias parecer a mais nova. Há trânsito, sim, mas sem a severidade de outros pontos extremos da nossa capital.
Fora deste horizonte, os extremos se dividem em zonas preferencialmente desgastadas pela superpopulação e pela injusta administração do poder público. São casos sórdidos de falta de tudo : nestas zonas periféricas, acontece o primeiro escalonamento para a falta de água ; empresas de energia elétrica desligam a luz e acabam com o incipiente negócio de uma única porta, pois há que se perder o pequeno estoque do freezer ; na periferia e bairros distantes, o AMA não funciona, o SUS não atende - os funcionários tratam mal os pacientes ; o mais degradado núcleo da comunidade, no fim, é o que mais manda : o tráfico de drogas, naturalmente vinculados ao PCC e, portanto, disseminador de assaltos, assassinatos, arruaça e o que mais for conveniente para “ tocar o terror “. E como tocam. E como aterrorizam.
A impressão que fica é a de que pobre não dá certo. Parece haver uma combinação nos céus para que o sofrimento fique maior a cada dia. O desalento interfere no trabalho diário difícil e culmina com a porra da greve de trabalhadores que também não ganham o suficiente para uma vida digna. É uma bola de neve sem fim que agride, cria obstáculos. O foco do desabamento social não está na base da pirâmide e nem no topo : inicia-se no desafeto do cidadão que se utiliza da máquina pública para reverter o direito da população em benefício próprio, egoísta e manipulador das massas. O brilho que deveria se espalhar com o dinheiro pago nos impostos é diluído e muito pouco usado no desenvolvimento de horizontes ensolarados.
Nesta, como em outras greves, estamos perdendo a capacidade de nutrir os cidadãos preciosos dos quais necessitamos para produzir uma sociedade feliz. São deixados para trás os policiais qualificados, os professores com projetos de sonhos, os profissionais das mais diversas áreas com seus estudos abrangentes. Não desviar os recursos seria o ideal – somos, sim, um país de muitas riquezas.
Olhando sob o aspecto da paisagem radiosa, sem os caixotes circulando pelas ruas, imagino um frenético vai-e-vem de trens subterrâneos que criem uma mobilidade sadia para as pessoas, fazendo com que cheguem ao seu destino do modo mais seguro e rápido. Há dinheiro para isso, mas também existe o cartel rodoviário que engessa a prefeitura e o governo do Estado com bolos de dinheiro para a massa miúda dos funcionários que liberam o trajeto de ônibus quebrados e sem ar condicionado. Colocam em circulação a quantidade que acham conveniente e não a necessária para suprir o número de passageiros. Jogam com a esperteza e nada mais justo que a greve para chamar a atenção.
O meu olhar e a minha redondeza pouco importam para a multidão que hoje se engalfinha em algum ponto da cidade para conseguir chegar em sua casa. Mas eu me importo e, através do olhar desta cidadania desvalida, me incomoda que ela não tenha o mesmo que eu, no seu aspecto mais básico.
Se isso é sonho, quero continuar sonhando.
Mas muito do que sonhei já existe por aí.
21 de maio 2014.