O poder da mente continua inacessível. Vagar no que a ciência proclama e absorver o que o cérebro nos dá são diferenças gritantes, onde a discussão não fica só no âmbito de profissionais capacitados, mas no que a experiência do dia-a-dia nos traz.
O reflexo não mais tão rápido, a repetição sistemática de um mesmo assunto, o círculo vicioso dos mesmos problemas, a rotina de necessidade - para que o tempo dure o mesmo tanto e as coisas sejam as mesmas a serem feitas.
Envelhecer agiganta ou apequena o mundo? A saúde física e a capacidade para resolver pequenos problemas e viver em sociedade transformam idosos em heróis da atualidade recheada de tecnologias. Mas é perceptível quando vozes longínquas retornam das tumbas ou dos oitenta, noventa anos de existência e assombram o olhar envelhecido dos nossos velhos pais, tios, amigos e conhecidos. Vivo rodeada desses olhares perdidos num mundo particular. Embora transbordem vontade de viver e se sintam aptos a resolverem tudo, existe um olhar que vagueia, como a buscar num canto da memória de como seria esta aptidão.
O poder do cérebro excede o conflito entre gênios da medicina; excede nomes especiais para cada doença, advindos dos sucessivos e diversos sintomas. Esquecer? Eu esqueço, tu esqueces, ele esquece, nós esquecemos. Mas o olhar...mas os movimentos, mais ou menos velozes, mais ou menos possíveis...mas o perceptível ou não...isso transforma nossos heróis em velhinhos.
Cena 1:
Durante um passeio pela plantação de seringueira, meu pai carrega um cajado para espantar bichos peçonhentos. Faz isso há muitos anos. Mete uma botina, invoca com todos que não caminham como ele e parte para a sua pequena aventura. Desta vez, fomos com ele, minha mãe e eu.
- Você sabia que quem inventou esta forma de plantio, que segue em curvatura, foram os incas?
- Não, não sabia não, pai.
E seguimos adiante no meio da estradinha.
Cena 2:
Mais à frente, minha mãe me espera.
- E aí, mãe, cansou ?
- Que, cansei o quê ... estou com saudades dos nossos mortos.
- Pensa em outra coisa. Olha o céu, cheio de nuvens !
- Quero que o céu se foda.
Cena 3:
Já no fim do trecho de seringueira, tendo subido e descido morrinhos e pisado em muita lama e bosta de cavalo, dava para apreciar um lado inteiro das árvores, todas certinhas, uma pintura. Ficamos admirando por instantes a paisagem, enquanto minha mãe falava, pela oitava vez durante o trajeto, que vida de professora é fogo, que antigamente era uma coisa maravilhosa, que se ela fosse solteira não ia ter como pagar aluguel, etc e etc.
Meu pai parou na estrada e olhou para uma plantação de cana e, com o cajado em punho, discorreu:
- Você sabia que quem inventou esta forma de plantio, que segue em curvatura, foram os incas?
- É, o senhor me falou agora há pouco.
- Falei nada.
Com os dois, nada é surpresa. Tudo já foi comentado, discutido, apreciado. Quando há algum assunto novo, dura pouco, pois o circuito deve sempre ser fechado com as idéias que estão previstas.
Acredito que todos os cérebros sejam assim, uma vez que fazemos nossas conjecturas ao longo da vida e nelas passamos a crer e a redundá-las com mais informações. Quando envelhecemos, talvez as novas informações não mais nos atraiam. As opiniões se formaram e petrificaram neurônios e afins – talvez os neurônios sejam mais inteligentes e seletivos do que imaginamos e nos protejam do mundo.
Entendendo assim, tenho um projeto de ser paciente cada vez mais a cada dia, comentando assuntos possíveis e relembrando a cada momento as novidades que precisam ser assimiladas pelos meus velhos. É um projeto antigo, mas precisa ser rememorado a todo instante, pois paciência não é uma virtude que se compre na esquina.
Cena 4 :
No caminho de volta na estradinha de terra e procurando a sombra das palmeiras, minha mãe comenta – pela segunda vez e com a mesma entonação - a inteligência dos cachorros, que contornam o mata-burro. Pergunto se gostou do passeio.
- Gostei. Mas quero chegar logo na casa, que tá calor pra caralho.
Meu pai, depois de ter falado de Shakespeare, citado todos os deuses do Olimpo e descrito sobre a extração da seringueira na Amazônia, para diante de um dos calombinhos que separa um tronco do outro. Reconheci de pronto aquele olhar.
- Você sabia que quem inventou esta forma de plantio, que segue em curvatura, foram os incas?
- Sabia, sim.
- E você sabia que o primeiro caso de homofobia também foi registrado na civilização inca?
- Como assim, pai ? Nunca soube disso.
- Verdade! Eles não gostavam de incagay.
Vá dizer que a mente não é superpoderosa....
JANEIRO 2014