Dois amigos conversavam em volta de uma mesa lotada de latas de cerveja vazias.
- Põe aí, põe aí, o Tim Maia.
- Qual música?
- Qualquer uma, põe aí, Tim Maia é bom.
A mesa era um tsunami de amendoins, queijinhos, palitos, mini copinhos de dose de whisky, já entornados. Fumaça de cigarro fazia redemoinhos no tempo frio e garoento.
O amigo mais cheio, barrigudo e lento, estava sem camisa, num calor de fogo que só ele sentia. O mais magro mexia no ipad sintonizado no youtube.
- Você entendeu agora, como se mexe nisso ? – perguntou o amigo mais magro.
- Entendi, entendi, tá tudo certo. Põe aí, põe aí, Julio Iglesias.
- Qual música ?
- Qualquer uma, põe aí, Julio Iglesias é bom, é bom.
Fim de tarde de sexta-feira é momento de descontração. Descontrai-se músculos, canseira, atividade física e estragos de humor da semana. Sexta-feira é o dia em que a atividade cerebral não se manifesta. No caso dos dois amigos, foi o dia escolhido para um apresentar ao outro a novidade que desabrochou a vida. Em pleno 2013, o mais cheio acabava de ser apresentado ao youtube.
- Como é que pode existir uma coisa linda destas, hein ?
- Pois é...
- Coisa linda...olha só...Champagne...com tradução!!!! Que lindo !!!
O mais magro, com uma paciência de Jó subindo as escadas, ensinava passo a passo os toques certeiros para que o mais cheião aprendesse a lidar com os dedos na busca por mais videos.
- Que lindo que é isso, gente...
- É...e dá pra achar qualquer música que a gente quiser.
- Qualquer uma ? – a cerveja e o whisky driblavam a cabeça do aprendiz. Estava maravilhado e apaixonado pela descoberta: - Tem aí então a Isaurinha Garcia? Ah, não, Caetano, põe Caetano! Não, não, acha aí, acha aí, Roberto Carlos !!!
Bateu um vento e derrubou algumas latas no chão. O barulho atordoou a cabeça dos ouvintes da boa música e os dedos desajeitados do mais cheiinho estragaram a busca.
- Putz, que merda, estraguei tudo aqui ! E agora, e agora ?
- Fica frio, a gente começa de novo.
E começaram tudo de novo mesmo. Entornaram mais uma dose de whisky, encheram os copos de cerveja e reiniciaram o processo de escolha. Estavam curtindo ao máximo tudo aquilo. Escolhiam músicas pelas cenas apresentadas no menu. Uma curtição. Brindes cafonas, cenas de amor explícito, paisagens recheadas de montanhas, nuvens, o sol nos mais variados tons e luas cheias e olhares lânguidos, próprios dos romances.
- E aí, e aí ? Conseguiu ?
- Tá quase, chefe. Tá carregando...
- Ah, é ? E demora muito?
- Não...aí, deu. Roberto Carlos. Nossa Senhora.
O mais cheiinho chorou. Encheu os olhos bêbados de lágrimas e limpou os óculos embaçados.
- É....a vida é boa...
- Ah, é boa, né ? – diz o amigo magro. – Se não fosse, a gente não tava aqui...
As palavras saíam trôpegas. A música faz coisas loucas com as pessoas e eles se abraçaram, cumprimentando-se pelo que tinha dado certo na vida de cada um até então.
E por mais algum tempo rolou de tudo por ali, de Francisco Petrônio a Elis Regina, de Barry White a
O frio aumentou, a garoa piorou e eles nem se moveram. Apenas as latinhas rolando os alvoroçava e colocava alguma realidade no mundo novo que partilhavam, revirando lembranças que as músicas traziam de volta.
Por incontáveis vezes, o ipad desligou, foi inundado por cerveja, casquinhas de amendoim e farelo de pão.
A vida é bela.
Num toque sem precedentes, apareceu Donna Summer cantando, no auge da discoteca.
Os dois não tiveram dúvidas : como era de se esperar, depois de tanto goró e instantes únicos de felicidade, terminaram a noite dançando.