CARTAS MARCADAS
CARTAS MARCADAS

Eu nasci, como muitos, numa época em que queriam um Brasil melhor para seus filhos. Fui um desses filhos empurrados para dentro de uma revolução, cresci sem saber de nada e me lembro de que, na escola, tinha que escrever todos os dias no cabeçalho que o dia estava nublado ou ensolarado, chuvoso ou frio, e logo abaixo, mal sabendo escrever nos primórdios do primeiro ano, "Salve nosso presidente Emílio Garrastazu Médici. Daí as matérias começavam, com os livros do MEC especialmente formulados para que a história do meu país fosse retratada da maneira como queriam os escritores vigiados pela varinha mágica da censura. Cresci devagar, passando de passo em passo cada leitura da revista Cruzeiro e depois da Manchete; e já naquela época achava que as coisas eram muito estranhas. Semanalmente, cantávamos o hino nacional na frente da escola, com uma grande fileira de meganhas que usavam ainda aquele capacete redondo. As coisas nunca se encaixaram na minha cabeça. Fui procurar leituras mais edificantes. E nas entrelinhas, tudo o que eu queria escutar ali estava, dando dicas de mais livros, mais informações, mais abertura...para a minha cabeça. Os anos 80 chegaram e minha cabeça já estava feita, embrulhada para presente aquilo que seria o futuro. Muitos querem um país melhor para os filhos, mas se esquecem que o país melhor não precisa ser para os filhos. As gerações criam para si independências que criticam as leituras de época dos pais. Eu critico a geração que me fez ignorante do real histórico do meu país e que deu a censura para nos tolher do que de melhor tivemos na cultura dos anos 60 e 70. Ainda bem que meus dezessete anos alcançaram os anos 80 e tivemos a nova safra de desordem cultural; ainda bem que peguei o auge do movimento punk e o mundo foi convulsionado pela crise do petróleo e acabamos por conhecer, definitivamente, os xiitas e seus turbantes. Ainda bem que pude ver os nossos exilados voltando;  ainda bem que vi os grandes de nossa música voltarem a criar, junto com a maluquice da discoteca, as canções que ainda hoje são as vitoriosas nas pistas. Vivi uma juventude de mudanças frenéticas, em que as pessoas tomavam tento das questões do terceiro mundo, começaram a misturar as guerras passadas e recentes e passaram a lutar por um lugar ao sol. O sol não estava na ditadura, o tempo nublado que ela trouxe não condizia com os rocks brasileiros. Era preciso mudar. De novo. Ir para as ruas era o que começava a pulular nas cabeças pensantes, proletárias, sindicalizadas. Nós, brasileiros de bandeira no corpo - que havia muito pouco tempo era proibido - marchamos pelas Diretas Já. Não conseguimos. Foi um acordão indireto que nos fez chegar ao Tancredo, que morreu sem sentir o gostinho. Viramos ouvintes de Sarney e sua bela fala, que valia a pena, porque estávamos conseguindo a transformação muito rapidamente: votaríamos para presidente. Muito havia se passado e a criatura nascida nos anos 60 foi tomar consciência da individualidade e importância do ato de votar muito tardiamente. Era preciso pensar.  Mas pensar como? Se durante a nossa formação tivemos atritos, pouca base, livros de história com desenhinhos de padres catequizando índios e índios felizes ganhando presentes? Se os nossos escravos nos apareciam, nos mesmo livrinhos, sorridentes por servirem aos seus senhores? A chibata estava censurada. 
Hoje, continuo me surpreendendo pela chibata censurada. Como alguém consegue enxergar enviesado com os rumos idênticos que o mundo tem a cada período da vida capitalista? É normal que isto aconteça, pois que as massas sempre serão menos agraciadas com o feitio produtivo dos grandes produtores. A cada geração, será assim, até que uma nova forma de enxergar o mundo da produção e seus estoques, de vendas e de quem compre mercadorias não seja visto da forma mesquinha que existe hoje e sempre existiu, desde que o mundo feudal terminou e os burgueses passaram a ser os donos das vendas e o dinheiro passou a ser o modo vivendis, com a crueldade das trocas de quem o tem, somente. 
A cada geração, as críticas pelos feitos há de existir. Façamos pelo hoje. Pensemos no hoje, no que temos em mãos agora. Nossos filhos saberão reivindicar os seus direitos nos momentos vividos no tempo futuro deles. Nossos netos idem. Não brinquemos, pelos nossos filhos, de estruturar um castelo que sabemos de cartas marcadas.