Era tarde, quase noite, e ele correu as ruas escuras que rodeavam o pequeno bairro e chegou em casa. Não encontrou ninguém, apenas as luzes apagadas e um cheiro forte de comida queimando no fogão, desgastado pelo tempo. A ação do tempo é assim mesmo, pensou, e pôde até ter uma certeza : ela tinha ido embora, tinha largado tudo feio para que ele pudesse sentir de verdade. A luz apagada e o péssimo cheiro de queimado davam a entender a sua ironia.
Darlene era assim. Olhou para ele num dia meio esquisito de verão e, portando-se de maneira direta e um pouco vulgar, talvez, sugeriu que ficassem juntos. Ela era uma maravilha – disto Genésio tinha plena consciência – e acabaram se casando numa igreja perto da casa da mãe dele, que tudo fez para desmerecer a moça feiticeira que conseguira arrancar da boa vida o filho querido. Pouco Darlene se importou com a rabugice da velha. Moleca que era, gostar de Genésio era fácil. E pouco a interessava saber se ele gostava dela. Sentia-se bem, achava-se bonita porque ele lhe comprava vestidos e sapatos e, afinal, não comiam. Viviam de festinhas, bares e amor. Ele, porque a adorava e ela, porque mantinha a forma. Ele, porque vivia sorrindo quando lhe perguntavam da Darlene e ela, porque havia se acostumado.
Bendito seja Deus por essa vida. Talvez Genésio rezasse muito, pedindo a Ele que nunca lhe tirasse Darlene, nada fizesse para que sua deusa fosse embora para sempre. Ela era especial! Tinha um jeito de andar que chamava a atenção; tinha um rebolado macio que atraía motorista de táxi, entregador de roupas e garotos de colégio. Rebolava que dava gosto e ele sentia um imenso orgulho dela. Era um amor, compreensiva, carinhosa e inteligente.
Genésio era um moço esforçado. Trabalhava e ganhava razoavelmente bem. A casa em que moravam era dele, comprada pelo BNH com financiamento de 20 anos e, para Darlene, era mais que bom. Ela sentia prazer de estar com uma pessoa bem de vida, bem ela que nada tinha, apenas pais separados e uma vida de favores que ela sabia muito bem recompensar, lá a seu modo. Convinha-lhe ficar com Genésio. Em alguns pontos resumidos, ele era bonitão, tinha casa própria, um emprego fixo e dava-lhe regalias que nunca teve. Era bom. De mais a mais, quem sabe um dia, com os amigos que Genésio tinha, ela não arranjaria um emprego decente e faria a vida? Era o que bastava. Genésio, enfim, não passava de uma escada mesmo, com um sorriso no fim, abrindo os braços e dizendo : vem, meu bem, farei de você uma deusa!
Genésio não desconfiava deste capricho. Sabia que mulher é bicho meio esquisito e traiçoeiro quando quer, artista quando quer, fazedora de tipos quando bem entende. E a vida seguia. Darlene adaptara-se facilmente à rotina do marido, embora desse lá suas escapadas de bela da tarde. Permanecia na roda de amigos de sempre, espalhando seu sorrisinho frenético de Marilyn reencarnada e fazendo de seus carinhos e compreensão o que prendia sua escada.
Num dia qualquer, Genésio chegou eufórico, comunicando que lhe arranjara um emprego de secretária na empresa e ela abriu um sorriso de Monalisa. Fixou os olhos no infinito, brilhantes de tentação, e correu para os braços do marido, tirando o avental no meio do caminho, ajeitando os cabelos com dengo de estrela e rebolando os quadris naquele melindre que era só seu.
Dali em diante, as coisas foram mudando aos poucos. Se até antes do emprego Darlene tratava bem a sogra, depois daquele dia a coisa foi se transformando. Criou um tipo de ironia que irritava tanto a sogra quanto o marido. Passou a deixar de lado os cuidados com a casa, queimou camisas e nem ligou, pois odiava passar a ferro. Genésio ia levando. Sua mãe dizia que já sabia, que já conhecia o tipo, mas que Genésio agora visse o que fazer – ele que aturasse os caprichos da esposa melindrosa e autoritária.
Genésio ficou muito tempo amuado. Pensou, pensou e disse para os seus botões que não viveria sem Darlene; que sabia que ela o afundaria; que seria caçoado pelos amigos – mas resolveu que ficaria com ela, porque ela ainda era aquele sonho pelo qual se apaixonara havia alguns anos. Seu coração pareceu até ficar mais aliviado. Olhou para o pessoal da seção e o sangue ferveu de alegria em suas veias : sim, ficaria para sempre com a mulher amada.
Encerrado o expediente, foi correndo para casa.
Era tarde, quase noite, e ele correu as ruas escuras que rodeavam o bairro. Chegando, não encontrou ninguém. Apenas as luzes apagadas e um cheiro forte de comida queimando no fogão, desgastado pelo tempo. A ação do tempo é assim mesmo, pensou, e até pôde ter uma certeza : ela tinha ido embora, tinha deixado tudo feio para que ele sentisse de verdade. A luz apagada e o cheiro de queimado revelavam a sua ironia.
Darlene era assim mesmo. No fundo, ele sabia. Não mudaria nunca. Era ambiciosa e pequena – faria qualquer coisa para fazer da própria vida o que quisesse, não importando com que, para isso, arruinasse a vida das pessoas a sua volta.
Genésio tomou veneno nessa mesma noite, antes de dormir. Achou até graça na maneira corajosa com que pegou o copo e derramou nele um tanto do veneno, misturando a um outro tanto de pinga. Engoliu tudo como se fosse remédio, um remédio amargo sem dúvida, mas menos amargo do que seria o seu viver sem Darlene.
Dormiu sorrindo. Acordou mortinho, em pleno céu, carregado pelos anjos – que eram muitos : dois para cada perna, um para cada braço e três para cada chifre.
Texto escrito em setembro de 1984.