O GOLPE E SUA VÍTIMA
O GOLPE E SUA VÍTIMA

 No aniversário de 50 anos do golpe militar de 1964, está havendo uma amnésia coletiva. Está-se retornando ao mesmo rodamoinho político-social de possível instalação do poderio das forças armadas. Há aclamação das classes sociais e imprensa por isso. Já temos quase instaurada uma "marcha da família" , como tivemos em 64, contra a "ameaça comunista" que Jango oferecia.

O mundo, desde então, mudou. O Brasil mudou. Durante o processo de redemocratização, houve altos e baixos, controvérsias e lutas. Espaços foram conquistados e assim deve ser, como em qualquer jogo político e democrático. Para arrumar a casa, é preciso tempo e colaboração, não radicalismos que interponham um regime de exceção e silêncio. A faca amolada corta cabeças, mas não as estimula às mudanças. 

O país que queremos deve ser conquistado sobre discussões, não ceifado delas. Nunca foi e nem será fácil transformar cabeças. Fácil é arregimentar armas e soldados, armar barricadas e destilar o ódio entre os divergentes nas opiniões. Fácil é riscar com lápis uma fronteira no mapa – difícil é entender o significado de fronteira e eliminar o conceito de união e cultura de um povo.

O Brasil é um país inclinado a saborear os conluios tribais europeus e as informações heróicas norte-americanas. Esquece que a Europa é um conglomerado de países redesenhados na Segunda Grande Guerra, fator decisivo para a dissolução de países cujos povos, antes dela, nunca tinham se bicado. Não é viável a nossa intromissão em valores alheios ao nosso parco entendimento guerreiro. Aliás, de guerra sabemos de nossos escravos nelas. De guerra, sabemos de deserção. O americano inventou a publicidade para justificar os maus feitos, arregimentando bocas que falassem e divulgassem para persuadir; inventaram o “lobby” no Congresso e os dois Partidos têm características, salvo algum ponto aqui e ali, muito parecidas.

O Brasil foi mudando, depois de cada período ditatorial, para melhor. As nossas fronteiras culturais são perfeitamente assimiladas e o lobby importado caiu como luva para as pretensões do nosso ainda existente coronelismo visceral. Será mais preciso um confronto com as nossas carências sociais, institucionais e políticas do que um mero retorno ao jugo de militares, estes sim aloprados e com histórico de golpes.

A nossa luta é moral. Para este conceito, são necessários anos de amadurecimento da nossa jovem estrutura como país de brasileiros. Encarnar a figura rebelde que mistura a causa torna a movimentação insegura, sem pavio que acenda o fio correto. Chutar o que foi conquistado e querer de volta o que foi chutado antes não vai fazer do Brasil um país mais habilitado a perder os seus vícios. Traduzindo: esquecer a democracia conquistada depois de 20 anos de ditadura militar não vai tornar o país menos corrupto.

Um país menos corrupto só se consegue com a implementação do estudo, da discussão, do tempo. Adicionar o ódio mortal e descabido ao ideal esquerdista ou direitista é retardar o processo de mobilização para a busca de um novo modelo econômico. Já passamos desta fase. Tivemos o século XX inteiro adaptando os modelos conhecidos e neles enxergamos os defeitos e boas medidas. Seguir em frente é o passo a ser dado, com criatividade e bom senso, sem alusões a repertórios prontos e batidos. O papel da imprensa é este, o de estimular assuntos e veicular manchetes;  ser o advogado do diabo e, ao mesmo tempo, vítima das próprias investigações.  Mas o papel do leitor é sopesar os fragmentos das notícias, entender que nem tudo é justificável e que os meios não justificam os fins – como nos versos fantásticos do Chico Buarque onde, de acordo com o seu próprio interesse, a população joga bosta na Geny, depois a declara heroína, depois joga bosta na Geny de novo.

Nestes últimos 20 anos, tempo em que pusemos nossos votos nas urnas e impusemos nossas escolhas – sejam elas com erros ou acertos -  , nunca me passou pela cabeça que qualquer setor da sociedade, fora dos quartéis, pudesse ansiar pela celebração dos 50 anos do golpe de 64.  Mas ainda não temos remédio para a esclerose política.

 

 

Março 2014.