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A PRINCESA E A LAGOA
A PRINCESA E A LAGOA

 

A filha do rei subiu correndo as escadarias do palácio.

Esbaforida e descabelada, nem percebeu que deixou cair, da cesta que carregava, as flores que tinha colhido no bosque. Tropeçou nos degraus e acabou rasgando um pedaço do longo vestido cheio de brocados cor-de-rosa.

Nada anormal para uma princesa cheia de coisas na cabeça. Com dezesseis anos, era a próxima a ter o casamento selado com o príncipe mais inteligente, bonito e querido do reino mais próximo.

Era uma princesa desmiolada. Muitas vezes, fugia das aias na hora do banho. Detestava mergulhar seu corpo naquele amontoado de rosas que boiavam na banheira e que a deixavam com um cheirinho especial. Preferia cuidar de seus bichos de estimação que, muitas vezes, recolhia dos bosques por onde caminhava e os tratava como filhos. Criava desde cavalos até macaquinhos atrevidos; tartarugas medonhas e enrugadas até esquilos engraçadinhos, mas que enlouqueciam os fiéis servos que a ajudavam no trato.

Era uma princesa doce e raivosa. Nos dias de hoje, seria considerada bipolar. No seu tempo, era só desmiolada.

- Princesa, por que corres tanto assim ? – indagou a aia prestativa, correndo para ajudá-la na sua queda.

- Tive um sonho, aia Bel ! Um sonho horrível !

Levantou-se, desvencilhando-se do que sobrou da cesta e das flores.

- Que tipo de sonho, minha princesa ?

Arrumando os cabelos desgrenhados num embolotado coque, explicou para a aia que, em seu sonho, todos os seus amados súditos não compareceram ao seu casamento porque souberam que a princesa não gostava de banhar-se na infusão de rosas. E que – horror dos horrores – o príncipe soube do seu receio em tirar as botinhas em ambientes fechados.

Na verdade, a princesa linda e alta, de cabelos macios e com as pontas encaracoladas que voavam ao vento, tinha chulé. Nada disso era de conhecimento da corte. Somente a aia mais próxima, Bel, sabia deste desleixo monumental.

A aia Bel, guardadora do segredo real, fazia o seu papel limpando as botinhas todos os dias e deixando-as ao sol na imensa varanda que cercava o quarto da princesa. Esta providência eliminava algum odor,  mas o pior continuava nos vãos dos seus dedos.

O sonho, portanto, era realmente horroroso porque tinha fundamento.

Mas voltemos ao cotidiano da princesa.

Nos momentos de passeio, era sempre acompanhada pelos seus cães, macaquinhos, esquilos e pássaros. Caminhava por entre as folhagens e trilhas variadas, embora a que mais a agradasse era o caminho tortuoso e florido que a levava a uma lagoa azul. Pequena e nítida na paisagem bucólica, a lagoa refletia os raios do sol e, nas águas tão azuis e claras, a princesa vislumbrava o fundo coalhado de pedras lisas. Ia ali por um só motivo : seu melhor amigo, o sapo Tindã.

Tindã, apesar dos cachorros peludos e brincalhões, dos esquilos graciosos e dos macaquinhos sapecas, era o bicho mais adorado da princesa. Era enorme e viscoso, coaxava feito um porco, mas a recebia como um príncipe. Fazia festa quando a via, pulando desajeitado de uma pedra a outra, e, num gran finale, mergulhava nas águas límpidas, arreganhando as pernocas como se em câmera lenta.

- Que lindo você é, Tindã ! – exclamava a princesa, rodeada de seus outros bichos. Ali, ela tirava as botinhas e mergulhava os pés nas águas puras da lagoa.

Um dia, acompanhando de longe a princesa a mando do rei, preocupado com os sumiços da filha, a aia Bel descobriu o lugar preferido da adorada protegida. Como lhe ocorresse uma idéia brilhante, foi em busca do alquimista da corte. No alto da torre do palácio, onde é de se esperar que um alquimista passe o tempo inventando fórmulas, a aia comentou o segredo da princesa e a sua idéia.

O homem de chapéu pontudo e barbas longas, com roupas longas e largas, pegou seu livro de fórmulas. Sob os olhares curiosos da aia, recolheu de vidros imensos e gavetas profundas todos os ingredientes de que precisava para misturar no seu caldeirão de grandes invenções. Depois de uma série de explosões multicores, uma fumacinha preta finalizou a poção. Colocou o conteúdo do caldeirão num vidrinho e o entregou à aia Bel.

- Vá, aia, e siga as instruções que lhe dei.

A aia Bel saiu agradecida da torre e guardou o vidrinho da poção no bolso do vestido.

A partir de então, por conta própria, seguia os passos da princesa rumo à lagoa.

Para testar a poção, permaneceu escondida entre as árvores e arbustos que circundavam as águas límpidas. Ao primeiro sinal de que a princesa tiraria as botinhas e lembrando-se das instruções do velho alquimista, deixou que uma gota do vidrinho atingisse a lagoa. De pronto, percebeu que o azul da água formava ondas suaves com as cores do arco-íris.  A princesa nada notou das novas cores que a água refletia, mas levou um susto quando, ao mergulhar os pés na lagoa do sapo Tindã, uma fumacinha preta subiu dos vãos de seus dedos.

A aia, não se aguentando mais de emoção, saiu do esconderijo e abraçou a princesa, relatando a sua idéia, a procura pelo alquimista, a poção e, por fim, o teste final : cheirar os pés de chulé.

A princesa, em vez de agradecer a pobre aia dedicada, ficou fula da vida. Com os dedos em riste, perguntou quem ela pensava que era, que era uma pobre serva que não tinha o direito de falar sobre seu segredo com ninguém, principalmente com o fofoqueiro do mago que, certamente, contaria para o reino inteiro que ela sofria do mal cheiro dos pés e que, “aí sim, aia Bel, o meu sonho se concretizará !!!”  e etc, etc.

Enquanto falava atrocidades para a aia Bel, pulava de raiva. Os cães, esquilos e macaquinhos pulavam junto, faziam arruaça, achando, todos eles, a brincadeira muito boa.

De repente, desajeitado e triste, percebendo o descontrole da princesa, o sapo Tindã pulou da lagoa direto para os pés dela. Com a sua boca de sapo gosmenta, botou a língua para fora e lambeu os dedos que ninguém ousaria chegar perto. Uma fumaça – agora sim, uma fumaça digna de poção, enorme e multicolorida – tomou conta da relva que rodeava a lagoa e se transformou no príncipe mais encantado que alguém já pôde, em vida, sonhar existir.

- Eu te amo, minha princesa. Estive aqui o tempo todo admirando-a e esperando a oportunidade de me transformar!

- Eu também o amo, Tindã !

Foram felizes para sempre. O chulé foi substituído pelo perfume de rosas e a princesa passou a gostar de tomar banho. A aia Bel foi perdoada e continuou a colocar a preciosa gota em sua banheira. O alquimista foi presenteado com uma sala mais confortável e sem tantas escadarias. Os bichos continuaram a atordoar os servos e a princesa continuou adorada pelos seus súditos. O rei ? Ah, o rei ficou lá, no trono, como sempre.

 

Moral da história : há que se acreditar em poções...